O projeto de lei conhecido como ‘Lei anti-Oruam’, proposto pelo vereador André Salineiro (PL), que proíbe uso de dinheiro público em shows e eventos de artistas que façam apologia às drogas e ao crime, levantou questões a respeito da constitucionalidade do projeto, bem como dos preconceitos contra a cultura da periferia. Segundo especialistas, o projeto precisa ser muito bem analisado ou pode incorrer em censura prévia e impactos na liberdade de expressão.
A polêmica começou em São Paulo e envolveu uma vereadora e um rapper, filho de criminoso. O projeto de Salineiro proíbe que a Prefeitura de Campo Grande apoie ou divulgue shows, artistas e eventos abertos a crianças e adolescentes que envolvam apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas. Caso um artista descumpra essa regra durante a apresentação, ele poderá ser multado em 100% do valor pago pelo evento e o contrato será rompido.
Como exemplo, Salineiro citou o show da cantora Ludmilla em 2022, realizado em Campo Grande, onde ela interpretou a música “Verdinha”, que faz referência ao consumo de maconha. O vereador criticou o fato de a Prefeitura ter divulgado amplamente o evento e destacou a necessidade de restringir esse tipo de conteúdo em apresentações acessíveis ao público infantojuvenil.
No entanto, conforme o advogado especialista em direito penal e criminologia, direito constitucional e direitos humanos, João Cyrino, é preciso se tomar cuidado e se discutir muito bem o projeto, caso de fato se torne lei. Segundo Cyrino, é preciso se definir bem o que será criminalizado.
O advogado explica que a criminalização da apologia ao crime já existe no ordenamento jurídico brasileiro, e que o problema do projeto está na interpretação do que se enquadra como apologia. Ele ressaltou que o STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu que defender a legalização de drogas, por exemplo, não constitui crime.
“A ideia de se proibir apologia ao crime em um evento público não é inconstitucional. Entretanto, é necessário entender o que está sendo considerado apologia. No caso do cantor Oruam, pedir a liberdade do pai, que foi condenado por diversos crimes, não é apologia ao crime”, argumentou o advogado.
Cyrino também destacou que o consumo de drogas em si não é crime no Brasil, pois a legislação penal não tipifica o ato de usar ou consumir drogas como conduta criminosa. Segundo ele, um projeto que tenta restringir esse tipo de manifestação pode acabar esbarrando em questões de constitucionalidade.
Outro ponto levantado pelo advogado é a possibilidade de discriminação contra determinadas manifestações culturais e artísticas. “Esse projeto mira um determinado setor, uma determinada classe, um determinado povo, uma determinada manifestação artística e cultural”, alertou.
Para Cyrino, um dos riscos mais graves do projeto de lei é a possibilidade de censura prévia. Ele explica que impedir a contratação de um artista por algo que ele pode ou não falar no futuro é um equívoco jurídico.
“Se um artista, em determinado show, faz um discurso que alguém interpreta como apologia a drogas, isso não significa que ele fará o mesmo em outro evento. Impedi-lo de ser contratado pelo poder público previamente seria censura. O correto seria prever uma consequência posterior, caso fique constatado que a apresentação realmente fez apologia ao crime”, ponderou o especialista.
Entenda o caso
O debate sobre a proibição de shows de artistas que fazem apologia ao crime começou em São Paulo, quando a vereadora Amanda Vetorazzo (Novo) apresentou um projeto semelhante e citou nominalmente o rapper Oruam, filho do traficante Marcinho VP, preso e condenado por tráfico de drogas. O cantor reagiu às declarações e, nas redes sociais, incitou críticas à vereadora.
A discussão escalou, e Vetorazzo recebeu ameaças de morte e de estupro, levando-a a registrar um boletim de ocorrência. A polêmica repercutiu em outras cidades e ganhou força com o apoio do deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil). Agora, a ideia chegou a Campo Grande pelas mãos de André Salineiro.